Para aqueles que são amantes da natureza...

"Este cerrado é um pouco como o nosso povo brasileiro. Frágil e forte. As árvores tortas, às vezes raquíticas, guardam fortalezas desconhecidas. Suas raízes vão procurar nas profundezas do solo a sua sobrevivência, resistindo ao fogo, à seca e ao próprio homem. E ainda, como nosso povo, encontra forças para seguir em frente apesar de tudo e até por causa de tudo"

Newton de Castro


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Cora Coralina


Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, adotou o pseudônimo de Cora Coralina, era filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador nomeado por D. Pedro II, e de dona Jacyntha Luiza do Couto Brandão. Ela nasceu e foi criada às margens do Rio Vermelho. Estima-se que essa casa foi construída em meados do século XVIII, tendo sido uma das primeiras edificações da antiga Vila Boa (Goiás). Começou a escrever os seus primeiros textos aos 14 anos, publicando-os posteriormente nos jornais da cidade de Goiânia, e nos jornais de outras cidades, como constitui exemplo o semanário "Folha do Sul" da cidade goiana de Bela Vista e nos periódicos de outros rincões, assim como a revista A Informação Goiana do Rio de Janeiro, que começou a ser editada a 15 de julho de 1917. Apesar da pouca escolaridade, uma vez que cursou somente as primeiras quatro séries, com a Mestra Silvina (Mestre-Escola Silvina Ermelinda Xavier de Brito (1835 - 1920)). Conforme Assis Brasil, na sua antologia "A Poesia Goiana no Século XX" (Rio de Janeiro: IMAGO Editora, 1997, página 66), "a mais recuada indicação que se tem de sua vida literária data de 1907, através do semanário 'A Rosa', dirigido por ela própria e mais Leodegária de Jesus, Rosa Godinho e Alice Santana." Todavia, constam trabalhos seus nos periódicos goianos antes dessa data. É o caso da crônica "A Tua Volta", dedicada 'Ao Luiz do Couto, o querido poeta gentil das mulheres goianas', estampada no referido semanário "Folha do Sul", da cidade de Bela Vista, ano 2, n. 64, p. 1, 10 de maio de 1906. No jornal Tribuna Espírita - Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1905.

Ao tempo em que publica essa crônica, ou um pouco antes, Cora Coralina começa a frequentar as tertúlias do "Clube Literário Goiano", situado em um dos salões do sobrado de dona Virgínia da Luz Vieira. Que lhe inspira o poema evocativo "Velho Sobrado". Quando começa então a redigir para o jornal literário "A Rosa" (1907). Publicou, nessa fase, em 1910, o conto Tragédia na Roça.
Em 1911, foi para o estado de São Paulo com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, que exercia o cargo de Chefe de Polícia, equivalente ao de secretário da Segurança, do governo do presidente Urbano Coelho de Gouvêa - 1909 - 1912, onde viveu durante 45 anos, inicialmente no município de Jaboticabal onde nasceram seus seis filhos: Paraguaçu, Eneas, Cantídio, Jacyntha, Ísis e Vicência. Ísis e Eneas morreram logo depois de nascer. Em (1924), mudou para São Paulo. Ao chegar à capital, teve de permanecer algumas semanas trancada num hotel em frente à Estação da Luz, uma vez que os revolucionários de 1924 haviam parado a cidade.
Em 1930, presenciou a chegada de Getúlio Vargas à esquina da rua Direita com a Praça do Patriarca. Seu filho Cantídio participou da Revolução Constitucionalista de 1932.
Com a morte do marido, passou a vender livros. Posteriormente, mudou-se para Penápolis, no interior do estado, onde passou a produzir e vender linguiça caseira e banha de porco. Mudou-se em seguida para Andradina, cidade que atualmente, mantém uma casa da cultura com seu nome, em homenagem. Em 1956, retorna a Goiás.
Ao completar 50 anos, a poetisa relata ter passado por uma profunda transformação interior, a qual definiria mais tarde como "a perda do medo". Nessa fase, deixou de atender pelo nome de batismo e assumiu o pseudônimo que escolhera para si muitos anos atrás.
Durante esses anos, Cora não deixou de escrever poemas relacionados com a sua história pessoal, com a cidade em que nascera e com ambiente em que fora criada. Ela chegou ainda a gravar um LP declamando algumas de suas poesias. Lançado pela gravadora Paulinas Comep, o disco ainda pode ser encontrado hoje em formato CD. Cora Coralina faleceu em Goiânia, de pneumonia. A sua casa na Cidade de Goiás foi transformada num museu em homenagem à sua história de vida e produção literária.



Aninha e suas pedras


Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.

E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina



Minha infância
(Freudiana)


Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam – eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
veio outra que ficou sendo a caçula.


Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.


Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam – diziam:
“- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente”.

Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula sem cabeça.

Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.

Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
“- Levanta, moleirona”.

Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
“- Levanta, pandorga”.
Caía à toa…
nos degraus da escada,
no lajeado do terreiro.

Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
” – Levanta, perna-mole…”
E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.

Meus brinquedos…
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.

Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis…
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.

E a casa me cortava: “menina inzoneira!”
Companhia indesejável – sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.

A rua… a rua!…
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.

Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.

Contenção… motivação…Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberâncias,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim…
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.

E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
” – Menina inzoneira!”
O sinapismo do ablativo
queimava.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar…
E a certeza de estar sempre errando…
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.
Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre…

Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
dizia:
“- Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido!”
Melhor fora não ter nascido…
Feia, medrosa e triste.

Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.

E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.

Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.

De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.
Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai…
- melhor fora não ter nascido.
E nunca realizei nada na vida.

Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.

Cora Coralina



O Cântico da Terra

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.

Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.

A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.

De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.

E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.

Cora Coralina



Mãe

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.

Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.

Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições…

Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe

Em ti está presente a humanidade.
Mulher, não te deixes castrar.

Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.

Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Cora Coralina



O Passado…

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
“Clube Literário Goiano”.
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.
Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.

O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.
D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado…
Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.

Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?
Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?
Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?…
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas…
Que importam?
E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.

Cora Coralina



Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.

Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Cora Coralina




Eu Voltarei

Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.

Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.

A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.

Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.

E eu morrerei tranquilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei…
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.

Eu voltarei…

Cora Coralina




Considerações de Aninha

Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.

Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos

Cora Coralina



Antiguidades

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.

Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmão mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada…

E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.

Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.

Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.

A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.

Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
“Tomando propósito”.
Expressão muito corrente e pedagógica. Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas…
- Valha-me Deus !…

As visitas…
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversar
que davam sono.

Antiguidades…
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.

D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita – alta, magrinha.
Lili – baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.

E, diziam dela línguas viperinas:
“- Lili é a bengala de D. Benedita”.
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio…
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Dsemorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando “causos” infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

Cora Coralina




Conclusões de Aninha

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar

E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.

Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.

Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.


Cora Coralina



Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

Cora Coralina



Mascarados


Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.

Cora Coralina



Ofertas de Aninha

(aos moços)

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina




Visita virtual a casa de Cora Coralina


Cora Coralina por Marcelo Barra

Documentário:



CORA CORALINA - CORAÇÃO VERMELHO

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