Eu sou o cerrado.
Domino, abraço e protejo quase 2
milhões de Km2 do meu país, ou seja, 23% do território de minha pátria. Sou,
assim, a Segunda maior formação vegetal da América do sul, depois do conjunto
florestal amazônico.
Algumas unidades de nossa federação
dependem de mim para seu desenvolvimento ou mesmo sobrevivência. Em Goiás,
cubro 88% de seu espaço geográfico; em Minas Gerais, 53%, no conjunto Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul, 39%; no Maranhão, 30%. É, porém, no Distrito Federal que não
permito concorrência – estou presente em 100% de seu território.
Concentro-me
principalmente no Planalto Central do Brasil, onde o solo, o clima, as
altitudes e o relevo favoráveis me permitiram permanecer, mas apareço sob a
forma de manchas em quase todo o espaço tropical brasileiro.
Sou acusado de monótono em minhas
características. Árvores pequenas, que muito raramente chegam a 8 metros de alturas,
folhas grandes e geralmente espessas, troncos e galhos tortuosos, cascas
grossas e cortiças. Um tapete de gramíneas, de arbustos, e subarbustos, com uma
certa descontinuidade, cobre e protege o meu chão.
Minhas árvores são bastante
afastadas uma das outras e suas copas quase nunca se tocam. Assim, abro-me para
o céu, o sol beija minha terra e enxergo amplos horizontes.
Ali,
minhas árvores são bem mais baixas, guardam maior distância entre si, as
gramíneas são mais contínuas e os arbustos mais freqüentes – sou o cerrado ralo
ou campo cerrado.
Além,
sou dominado pelas gramíneas, arbustos e subarbustos, as árvores desaparecem –
sou o campo sujo.
Mais à frente, as gramíneas imperam
de maneira quase absoluta, formando os meus campos limpos.
Em
meu domínio aparece também o cerradão, que é uma das mais belas florestas do
Brasil, com árvores que chegam a 18 metros de altura, muitas das quais comuns às
minhas formações típicas, mas com troncos retilíneos e cascas um pouco mais
delgadas.
Os
estratos herbáceos, arbustivos e arbóreos são bem mais distintos; o chão é
sombreado, o que faz rarear as gramíneas.
A vereda, com toda razão muito
vaidosa, já está pensando que dela vou me esquecer. Não poderia deixar de me
lembrar da mãe de minhas águas, do mais belo espetáculo cênico do mundo
tropical. É o meu oásis, só que de maior beleza que o saariano.
Observem-me mais atentamente e verão
que exibo, durante todo o ano, as mais belas flores do Brasil, flores para
enfeitar a minha vida e a de quem ama o belo.
Minha idade? Está guardada somente
na memória dos tempos. Sou uma das mais antigas formações vegetais do Brasil.
Vi nascer a luxuriante floresta amazônica, pois lá estava quando ela chegou. Um
clima cada vez mais úmido fez com que eu lhe cedesse lugar, recuando às minhas
antigas fronteiras, no Planalto Central, deixando ali apenas alguns núcleos,
testemunhos do meu antigo império.
Passei por vários climas, solos os
mais variados, adaptei-me a múltiplos ambientes, através de uma constante
seleção de minhas espécies e reações fisiológicas verdadeiramente milagrosas.
Vi os primeiros homens chegarem,
vindos de outros continentes. Ofereci-lhes abrigo, frutos, caça fácil e as
penas de meus pássaros lhe serviram de ornamento.
Acolhi em meu vasto coração os
homens ditos civilizados. Não fui egoísta. Ofereci alimentos para os seus
rebanhos e para eles próprios, dei-lhes madeira para os seus currais e cercas,
folhas e embira de buriti para a construção de suas casas, lenha para seus
fogões e rios que lhes conduziam ao Atlântico.
Com os chamados civilizados veio o
fogo induzido e sistemático, o que me obrigou a novas adaptações, quando então
muitas de minhas espécies desapareceram, mas, com grande esforço, não perdi a
minha identidade.
Resisti galhardamente à
“Maria-Fumaça”, aos vapores do rio São Francisco, aos fogões caseiros, sempre
sedentos de lenha. Mas foi a partir de meados deste século que meu mundo
começou a se desmoronar. Vieram as usinas siderúrgicas que tinham como base
energética o carvão vegetal. Minhas árvores começaram a ser dizimadas,
assassinadas numa extensão e rapidez nunca vista, através de uma verdadeira
política de terra arrasada. Meus animais praticamente desapareceram, pois
ficaram sem alimento, sem abrigo e sem refúgios, bem à vista de caçadores
impiedosos.
As grandes estradas começaram a
aparecer. Com elas vieram as famosas caixas de empréstimos, o decapeamento de meus
morros para encascalhamento de seus pisos; os cortes das ondulações de meu
terreno, sem sustentação dos taludes; os barramentos e a morte das veredas
pelos aterros, tudo isto contribuindo fortemente para o arruinamento de meus
solos e de meus rios.
O pior ainda estava por chegar; a
implantação de florestas homogêneas em grandes áreas do meu domínio. Também
desta vez nada foi respeitado. Topos de chapadas e de morros, vertentes,
veredas, fontes; tudo foi tomado de assalto. A erosão aumentou, pois só as
gramíneas tinham capacidade de segurar o meu solo, sempre mais arenoso do que
argiloso. Minha fauna foi mais uma vez sacrificada e as veredas perderam sua
função ecológica de genitora das águas e de paraíso dos animais.
Mas outra calamidade veio chegando
rápida e em grande extensão: a lavoura comercial monocultora. Esta, ao invés de
adaptar-se a meus solos, adaptou meus solos aos produtos de sua conveniência.
Adubos químicos e orgânicos, calagem, inseticidas, herbicidas, fungicidas, tudo
contrariando minha natureza, pois nada teve o controle devido. As lâminas de
tratores gigantes rasgaram fundo minha alma; arrancaram pelas raízes os meus
viventes vegetais; desestruturaram o meu solo, sem qualquer consideração por
meus princípios de vida. Com a utilização de meu terreno para outros fins, o
superpastoreiro passou a ser uma prática nefasta, especialmente nas superfícies
de solos mais instáveis. Como resposta a tudo isto, a desertificação, em alguns
de meus endereços, tem sido a terrível realidade.
Não posso terminar a minha fala, sem
dizer aos homens que sou o pai das águas do Brasil, a grande caixa d’água
nacional. Abram qualquer mapa hidrográfico de meu país. Observem e verão que de
minhas entranhas saem quase todos os afluentes da margem direita do Amazonas, o
Araguaia e o Tocantins; o São Francisco e seus principais afluentes; a maioria
dos tributários do Paraguai e ele próprio, ocorrendo o mesmo com o Rio Paraná,
o Paraguaçu e muitos outros rios das bacias nordestinas. Não é necessário que eu ensine aos
humanos que, ao desequilibrar-se a cabeceira de um rio, desequilibrar-se todo o
seu curso; ao desequilibrar-lhe o curso, desequilibrar-se toda a bacia
hidrográfica.
Senhores
racionais, senhores donos do mundo, não sou contra a minha utilização para a
satisfação de suas necessidades. Creio que, ao longo de minha história, provei
isto de maneira inquestionável. Ao contrário, quero continuar sendo generoso.
Para isto, aqui vai o meu grande apelo; um apelo quase desesperado: ESTUDEM-ME,
CONHEÇAM-ME, RESPEITEM-ME. Façam um zoneamento ambiental de meu espaço, deixem
lugar para meus animais, separem bancos genéticos de minhas espécies, protejam
minhas áreas críticas; preservem amostragens de meus ecossistemas, cuidem bem
de minhas coleções de água, especialmente de minhas veredas; resgatem os meus
500 anos de cultura que surgiu de nossa conveniência e que formou uma
verdadeira civilização. Enfim, AMEM-ME e eu prometo ser-lhes dadivoso de agora
até a eternidade.
Ivo das Chagas
Nota sobre o autor:
Nascido em 1933, no município de São Romão (Norte de Minas), o professor Ivo das Chagas era graduado em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com pós-graduação em Geografia e Ecologia Vegetal pela Universidade de Bordeaux (França).
Em 2006, foi homenageado como Professor Emérito da Universidade. Em 2011, foi homenageado como Patrono Geral de todos os cursos de graduação da Unimontes. Ivo das Chagas foi coordenador do programa de Educação Ambiental da Secretaria Especial do Meio Ambiente do Ministério do Interior (1982), membro do Conselho Consultivo Interministerial de Ciência e Tecnologia do Grande Carajás (1982), secretário-adjunto de Ecossistema, da Secretaria Especial de Meio Ambiente do Ministério do Interior (1983/1984) e conselheiro da Câmara de Bacias Hidrográficas do Conselho Estadual de Política Ambiental – Copam (1988/1989).
Foi integrante do Instituto Histórico e Geográfico (IHG) de Montes Claros. Em 2011, ele recebeu a Medalha da Inconfidência, do Governo do Estado. Professor emérito da Unimontes, Ivo das Chagas, foi reconhecido como um dos maiores estudiosos sobre Cerrado no Brasil e a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, com trabalhos de referência mundial sobre a geografia tropical, ecologia vegetal, cartografia e organização do espaço. Na Universidade, atuou como docente da então Fundação Norte Mineira de Ensino Superior (FUNM), posteriormente no Departamento de Geociências, foi pró-reitor de Pesquisa e coordenador do campus de Pirapora. Teve atuação destacada também em órgãos e cargos públicos dos governos federal e estadual.
Faleceu em 16/03/2018, aos 85 anos, em Montes Claros, Minas Gerais.
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