Johanna Döbereiner: a cientista que revolucionou a agricultura
Johanna Döbereiner já inspirou centenas de textos a seu respeito. Foi matéria das principais revistas nacionais e ainda hoje é lembrada quando o assunto é ciência. Foi, como muitos dos amigos e colegas de trabalho dizem, uma mulher à frente de seu tempo. Clichês à parte, a vida de Johanna foi mesmo um feito notável. Ela precisou se impor para ser reconhecida; precisou defender seus ideais em um ambiente geralmente inóspito a seu gênero; precisou mostrar que era competente, eficaz e eficiente para assumir múltiplos papéis. E sua trajetória começa bem antes da figura da senhora de cabelos brancos segurando e analisando placas em laboratório. A imagem de uma Johanna jovem e persistente é tão real quanto a da senhora indicada ao Nobel de Química nos seus 72 anos.
Johanna foi cientista, mulher e mãe. Recebeu inúmeros prêmios e homenagens. Liderou a pesquisa no então Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas – o precursor da Embrapa Agrobiologia – e orientou bolsistas que hoje estão espalhados pelo Brasil inteiro, quiçá pelo mundo. Foi chefe da Unidade, mas jamais deixou a pesquisa de lado para focar somente nos trâmites administrativos e burocráticos de uma instituição governamental de pesquisa. Acumulava funções com maestria, como se estivesse de fato regendo uma orquestra.
Em um século em que a agricultura somava desafios e tinha a presença masculina como regra, ela foi a exceção. Ao insistir no uso de microrganismos para promover a fixação biológica de nitrogênio e multiplicar a produtividade brasileira, alavancando a agricultura tropical e dando um novo alento na busca por competitividade frente a grandes mercados, ela selou seu nome na história. Sua contribuição transformou o Brasil no segundo maior produtor mundial de soja, atrás apenas dos Estados Unidos.
Totalmente baseado no processo de FBN, o programa brasileiro de melhoramento da soja, iniciado em 1964, desenvolveu-se no sentido inverso ao daquele país, que era baseado sobretudo no uso intensivo de adubos nitrogenados. Johanna estudou a fundo o uso de bactérias para impulsionar a fixação de nitrogênio na soja e a aplicação prática da técnica permitiu que o Brasil eliminasse o uso desses adubos químicos, representando uma economia anual de mais de 2 bilhões de dólares – sem falar na sustentabilidade, já que a tecnologia não gera passivos ambientais. "Na década de 60, ir contra a adubação química era quase um sacrilégio. Os fertilizantes estavam revolucionando a agricultura. Só muito tempo depois vi que nossas pesquisas não só permitiam uma produção mais barata como também mais ecológica, porque não poluía os rios nem o solo", disse, em entrevista à Revista Veja, em agosto de 1996.
A contribuição de Johanna para a ciência e a agricultura é evidente – e basta uma folheada nas matérias da época para relembrar como foi sua trajetória. Ela e seus colegas descreveram mais de nove novas espécies de bactérias diazotróficas, fato inédito para o Brasil na área agrícola. Johanna revolucionou a forma de trabalhar a agricultura, provando que é possível ter uma produção sustentável sem desgastar recursos naturais e maximizando a produtividade. Mas será que a "senhora das criaturas milagrosas", como a chamou a Revista Veja, sabia que avançaria tanto no conhecimento científico quando teve o contato com a terra pela primeira vez?
Embora não haja resposta para a pergunta, uma coisa é certa: a maior satisfação de Johanna era ver sua contribuição, por meio de sua pesquisa, para a adoção de práticas sustentáveis na agricultura – e não os prêmios e homenagens que lotavam as paredes e móveis de sua sala. O reconhecimento, sempre compartilhava com os colegas de trabalho. "Não faço nada sozinha. Tudo é fruto de muita troca entre nossa equipe", dizia.
Johanna nasceu em Aussig, na antiga Tchecoslováquia, mas foi no Brasil que fincou suas raízes. No município fluminense de Seropédica, no interior do Rio de Janeiro, ela se estabeleceu e criou os três filhos – Maria Luísa (Marlis), Christian Erhard e Lorenz. Foram 48 anos na mesma casa, na Rua Colina, ao lado do marido, o médico veterinário Jürgen Döbereiner (na foto ao lado, os dois juntos, em 1999). Naturalizada brasileira em 1956, ela chegou ao Rio de Janeiro em 1950, depois de anos turbulentos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Sua mãe, Margarethe Kubelka, havia morrido em um campo de concentração tcheco – um dos muitos que foram formados na então Tchecoslováquia após o conflito, em perseguição a alemães e à parcela da população do país que havia recebido a nacionalidade alemã no início da guerra. Mas sua força já havia sido transmitida para Johanna. "Não devemos falar para nossa filha que seu destino estará alcançado quando encontrar um marido. Devemos dizer à nossa filha que sua vitória foi atingida quando se orgulhar do que realizou", escreveu Margarethe em seu diário.
Pouco depois da morte de Margarethe, a família continuou a sofrer a perseguição dos tchecos, sendo expulsa do País em 1945. O pai, Paul Kubelka, deixou Praga acompanhado do irmão de Johanna, Werner. Ela, por sua vez, seguiu para a Alemanha com os avós, deixando para trás a cidade em que vivera desde a infância e onde por vezes acompanhara o pai nas aulas de Química que ele ministrava na Universidade de Praga.
O contato com a agricultura se deu em meados da década de 1940, quando conseguiu um emprego como operária rural em Sadisdorf, na região alemã de Dresden (foto à direita). Era plantando batatas e ordenhando vacas que ela garantia o salário para manter a si e a seus avós, que vieram a falecer ainda em 1945. Talvez inspirada pela força e pela educação que sua mãe lhe dera, decidiu contrariar as convenções de gênero e matriculou-se no curso de Agronomia da Universidade de Munique – área de difícil abertura para mulheres. Custeava os estudos trabalhando no campo, em uma fazenda que produzia variedades melhoradas de trigo, onde também se preparou para fazer as provas práticas exigidas para o ingresso no curso.
A faculdade deu certeza à Johanna do caminho que iria trilhar. Foi ali que ela conheceu Jürgen, companheiro de longos anos, e quando desembarcou no Brasil, em 1950, seguindo os passos do pai, foi com o diploma de agrônoma nas mãos que ela chegou ao Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas. Confessou que não aprendera nada prático na universidade, devido às limitações do pós-guerra, mas que tinha muita vontade para aprender o que fosse preciso. Foi contratada na hora.
Mas foi nas terras brasileiras que Johanna diz que aprendeu de verdade a fazer ciência. Em 1957 já era pesquisadora assistente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, em 1968, pesquisadora conferencista. Entre 1963 e 1969, quando poucos cientistas acreditavam que a fixação biológica de nitrogênio poderia competir com fertilizantes minerais, Johanna deu início a um programa de pesquisas sobre os aspectos limitantes da técnica em leguminosas tropicais.
Destacou-se, conquistou o respeito de seus pares e, aos poucos, tornou-se mundialmente reconhecida pelo seu trabalho. Mas era modesta. Não titubeava ao responder quando alguém lhe perguntava como era sua vida de pesquisadora: "Não tem nada de mais na vida de um cientista. É rotina como outra qualquer. Só que meu escritório é um laboratório. Sou uma camponesa no laboratório."
Tal dinamismo não foi ofuscado pelos anos de vida. Fosse aos 30 ou aos 70, Johanna mantinha o brilho no olhar, a rigidez na apuração dos dados e a convicção de que somente a ciência e a busca pelo conhecimento poderiam contribuir para uma agricultura mais sustentável. "Tenho ideias para mais 50 ou 60 anos. Não vou viver tudo isso. Temos que trocar informações e conhecimentos. A ciência precisa disso", afirmou, já no auge da sua carreira.
Indicada ao Nobel, mas anônima para o grande público
O estilo de vida pacato do interior do Brasil conquistou definitivamente Jürgen e Johanna, que sempre declarava seu amor pela pátria que a acolheu após os anos de horror da Guerra. "Me senti como estrangeira só nos primeiros anos, porque não falava a língua direito, não entendia", disse ao jornal O Globo, em 1979. "A gente veio como imigrante, sabendo que escolheu o Brasil como pátria e não para mudar nada. Eu sabia que estava sem pátria e vim aqui procurar uma nova pátria. Então vim com mentalidade positiva", completou.
Cientista reconhecida pela Academia Internacional, ela se dividia entre o reconhecimento no meio acadêmico e o anonimato para o grande público. Não era grande a parcela da população brasileira que já havia escutado seu nome quando ela veio a falecer, em outubro de 2000, aos 75 anos. Ainda hoje não é. Modesta, mantinha a simplicidade em tudo: no vestuário, na casa, no dia a dia. Não esbanjava luxo ou tinha uma vida de excessos. Não ficou rica ou famosa. "Eu teria condições, hoje em dia, de escolher qualquer parte do mundo para viver. Teria facilidade em arranjar empregos equivalentes ou melhores nos EUA, na Austrália, na Europa. Recebi convites para trabalhar em outros países, mas não troco o Brasil por nenhum outro. É o país que escolhi, estou muito bem aqui e não o deixaria nem para ter vantagens em outros lugares", contou ao Globo, ainda em 1979.
Era ávida e persistente. Mas, em casa, sabia deixar o trabalho descansando para o dia seguinte. "No fim do expediente, paro tudo. Desligo a cabeça, ouço concertos e penso na vida", contou, certa vez. Essa talvez tenha sido a receita para trabalhar por tanto tempo, sempre apaixonadamente – e o melhor, com o apoio irrestrito da família. Exerceu a profissão até mesmo depois de ter sido diagnosticada com problemas neurológicos, tendo permanecido até os últimos dias de sua vida trabalhando em seu laboratório na Embrapa Agrobiologia, acompanhando os trabalhos dos alunos e colegas. "A gente não pode nunca se conformar com o que já existe. Sempre há possibilidade de melhorar", dizia.
O legado: Johanna e as pesquisas sobre FBN
O cerne da pesquisa de Johanna Döbereiner sempre foi relacionado à fixação biológica do nitrogênio (FBN) e às bactérias capazes de realizar esse processo, por meio da captação do nitrogênio presente no ar e transformação em um elemento assimilável pelas plantas. Seus estudos avançaram a tal modo que contribuíram definitivamente para possibilitar o avanço do programa Pró-Álcool e também para colocar o Brasil como segundo maior produtor mundial de soja, atrás apenas dos Estados Unidos. A FBN possibilita a substituição de adubos químicos nitrogenados, oferecendo, assim, vantagens econômicas, sociais e ambientais para o produtor, para o consumidor e para o meio ambiente. Estima-se que a FBN tenha uma contribuição global para os diferentes ecossistemas da ordem de 258 milhões de toneladas de nitrogênio (N) por ano, sendo que a contribuição na agricultura é estimada em 60 milhões de toneladas.
Vítima de enfermidade neurológica, Johanna falece, deixando um importante legado para a ciência mundial.
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